Friday, November 20, 2009

Certa Vez

Há muito tempo atrás, "mais longe que os mais altos pássaros da memória alcançam", em que fui a trabalho - na época ainda não era do RH - numa cidade à beira de escarpas rochosas impiedosamente açoitadas pelo mar. As escarpas eram altas, e também as distâncias enormes, mas mesmo assim já havia terminado o trabalho e tinha dois dias livres. Até porque depois de um tempo convivendo com humanos sem consciência das ilusões da realidade, somos contaminados com algumas de suas manias. Resolvi folgar.

Um pouco afastado das rochas, cerca de uns 3.000m, havia um campo de lavandas que perdia-se da vista no horizonte. No meio das flores azuis vi pela primeira vez um dos meus maiores amigos, mestres, e que até hoje manda-me mensagens nas horas mais necessárias - sim, pois no RH só tem gente de olho no seu cargo, ou não seria do Inferno.

Disse Clarice Lispector - se não me engano - que amigos não se fazem, se reconhecem. E nos reconhecemos. Ele me chamou de longe com um aceno, suas roupas alvas contrastando com o campo azul. Disse-me que, sem medo de pretensão ou de parecer louco, tinha achado alguém a quem quisesse ensinar coisas que aprendeu em sua longa travessia.

Ensinou-me as coisas mais importantes da minha vida - com poucos concorrentes. Mas foi curso breve, relâmpago. A cada semana nos reuníamos no campo de lavandas e eu ouvia ele falar.

Certo dia, ele me disse que já tinha passado o que considerava o necessário para mim, e que, sem que perdêssemos contato, estes se espaçariam e seriam sempre breves e em momentos de crises pessoais. Explicou-me que era de um lugar muito distante, e que a viagem era muito demorada e custosa.

Neste ano, após 16 anos da última comunicação, quebrou o silêncio e mandou-me três avisos e um presente.

Só compreendi ainda o primeiro aviso, para o qual já providenciei preparativos. Mas tenho a certeza de que até o fim do ano entendo tudo - às vezes sou um tanto lento, não vendo o que se põe à frente do meu nariz.

Depois de M. (citado em outro conto), este foi o melhor reencontro de anos, em um ano particularmente difícil.

Wednesday, November 4, 2009

Prólogo

“Oh, Cidade de Tróia! A grande Tróia está em chamas!” Rossetti
“Antes do nascimento de Páris, Hécuba, rainha de Tróia, sonhou que tinha dado à luz
um facho que destruiria pelo fogo as muralhas de Tróia.”

PRÓLOGO
A chuva caíra o dia inteiro; ora densa, ora em finos aguaceiros, mas nunca cessando
por completo. As mulheres levaram os seus fusos para dentro, para junto da lareira, e as
crianças amontoaram-se sob as sacadas do pátio. Aventuravam-se a sair por breves minutos
entre dois aguaceiros para chapinhar nas poças rodeadas por fiadas de tijolo e patinhar de
lama o caminho até a lareira. Ao fim da tarde, a mais velha das mulheres que se encontravam
junto ao fogo julgava enlouquecer com o som dos gritos e do chafurdar, das cargas dos
pequenos exércitos, do embate das espadas de pau nos escudos de madeira, com o som dos
estilhaços e das brigas causadas pelos brinquedos quebrados, as lealdades deslocadas de chefe
para chefe, os gritos de “morto” e “ferido” quando alguém era excluído da brincadeira.
A chuva que caía pela chaminé era ainda demasiada para permitir cozinhar em
condições na lareira; com o escurecer do dia de inverno ia se acendendo o lume nos braseiros.
À medida que o cheiro bom da carne e do pão a cozer se ia espalhando, as crianças vinham
uma após outra acocorar-se como cachorros famintos, inspirando ruidosamente e discutindo
ainda, a meia voz. Pouco antes do jantar uma visita apareceu à porta: um menestrel, um
caminhante cuja lira, suspensa do ombro, lhe garantia o bom acolhimento e o alojamento onde
quer que fosse. Depois de lhe terem oferecido comida, um banho e roupas secas, o menestrel
veio e tomou o lugar destinado aos convidados mais bem-vindos, perto do fogo. Começou a
afinar o seu instrumento, encostando o ouvido às cravelhas de tartaruga e testando o som com
o dedo. Em seguida, sem pedir licença - já nesse tempo um bardo fazia o que entendia -
dedilhou um único e sonante acorde e declamou:
“Cantarei as batalhas e os grandes homens que nelas combateram; Os homens que
permaneceram por dez anos defronte das muralhas de Tróia, erigidas por gigantes;
E os Deuses que derrubaram, por fim, essas muralhas: Apolo, Senhor do Sol, e
Posídon, O que Faz Tremer a Terra.
Cantarei a lenda da vida do poderoso Aquiles, nascido de uma Deusa, tão forte que
arma alguma o poderia destruir. E mesmo a história do seu orgulho e arrogância e aquela
batalha em que ele e o grande Heitor lutaram ao longo de três dias nas planícies, frente às
altas muralhas de Tróia;
O orgulhoso Heitor e o galante Aquiles, os Centauros e as Amazonas, Deuses e
heróis,
Odisseu e Enéias, todos os que combateram e foram mortos nas planícies, diante de
Tróia...”
— Não! — exclamou a velha bruscamente, deixando cair o fuso e levantando-se. —
Não o permitirei! Não quero ouvir esses disparates contados na minha sala!
O menestrel deixou a mão esquerda tombar sobre as cordas, num tanger dissonante; o
seu ar era de desalento e surpresa, mas o tom de voz foi cortês.
— Senhora?
— Digo que não permitirei que essas estúpidas mentiras sejam contadas junto à minha
lareira! — disse ela veementemente.
As crianças soltaram sons de desapontamento; ela silenciou-as com um gesto
imperioso.
— Menestrel, és bem-vindo a tomar a tua refeição e a sentar-te ao pé do meu fogo;
mas não permitirei que enchas os ouvidos das crianças com essas mentiras sem sentido. Isso
não foi, de todo, assim.
— Verdade? — inquiriu o tocador de harpa. — Como o sabes, senhora? Eu canto a
lenda como me foi ensinada pelo meu mestre, tal como é cantada em todos os lugares desde
Creta a Cálcis...
— Pode ser cantada dessa forma desde aqui até a ponta do mundo — disse a velha —,
mas não foi, de todo, assim que aconteceu.
— Como sabes? — perguntou o menestrel.
— Porque estava lá e assisti a tudo — replicou a velha. As crianças murmuraram e
gritaram.
— Nunca nos contaste isso, avó. Conheceste Aquiles, e Heitor, e Príamo, e os heróis
todos?
— Heróis! — disse ela com desdém. — Sim, conheci-os; Heitor era meu irmão.
O menestrel inclinou-se para diante e olhou-a insistentemente.
— Sei agora quem és — disse ele por fim.
Ela assentiu inclinando a cabeça branca.
— Então talvez tu, senhora, devesses contar a história; eu, que sirvo o Deus da
verdade, não mais cantaria mentiras para serem escutadas por todos os homens.
A velha ficou por longo tempo em silêncio. Por fim, disse:
— Não, não consigo viver tudo aquilo de novo.
As crianças lamentaram-se, desapontadas.
— Não tens outra lenda para cantar?
— Muitas — disse o tocador de harpa — mas não queria contar uma história da qual
escarnecesses como de uma mentira. Por que não contas a verdade para que eu possa cantá-la
em outros lugares?
Ela sacudiu energicamente a cabeça.
— A verdade não é uma boa história.
— Não podes ao menos dizer-me quais são os desvios da minha história, para que eu a
possa emendar?
Ela suspirou.
— Houve um tempo em que eu teria tentado — disse — mas nenhum homem quer
acreditar na verdade. Porque a tua história fala de heróis e reis, não de rainhas; e de Deuses,
não de Deusas.
— Não é bem assim — disse o tocador de harpa — pois grande parte da história fala
da bela Helena, raptada por Páris; e de Leda, a mãe de Helena, e sua irmã Clitemnestra,
seduzida pelo grande Zeus, o qual tomou a forma de seu marido, o rei...
— Sabia que não poderias compreender — disse a velha mulher — já que, para
começar, nesta terra a princípio não existiam reis, mas somente rainhas, as filhas das Deusas e
estas escolhiam os seus consortes onde queriam. Mas, depois, os adoradores dos Deuses do
Céu, a tribo dos cavaleiros, os utilizadores do ferro, desceram à nossa terra; e quando as
rainhas os tomaram como consortes, eles intitularam-se reis e exigiram o direito de governar.
E assim os Deuses e Deusas se tornaram rivais; e chegou o tempo em que Tróia foi palco das
suas disputas... — deteve-se abruptamente. — Basta! — disse ela. — O mundo mudou. Vejo
que me julgas uma velha cujo espírito divaga. Este foi sempre o meu destino: falar a verdade
e nunca ser acreditada. Sempre foi assim e sempre assim será. Canta o que quiseres; mas não
zombes da minha verdade junto à minha lareira. Há muitas lendas. Conta-nos a de Medéia,
Senhora de Cálcis, e do tosão dourado que Jasão roubou do seu santuário, se é que o fez.
Ousaria dizer que também para essa lenda existe outra verdade, mas eu não a conheço nem
me interessa saber qual será; há muitos e longos anos que não ponho pé em Cálcis. —
Apanhou o seu fuso e, calmamente, começou a fiar.
O tocador de harpa baixou a cabeça.
— Seja como queres, Cassandra — disse ele. — Todos pensamos que morreras em
Tróia ou, pouco depois, em Micenas.
— Então isso devia provar-te que, pelo menos em certos detalhes, a lenda não diz a
verdade — disse ela, mas em voz baixa.
“Mantém-se a minha sina: falar sempre a verdade e ser apenas julgada louca. Até
hoje, o Senhor do Sol não me perdoou...”

Monday, November 2, 2009

Absoluta