Wednesday, November 4, 2009

Prólogo

“Oh, Cidade de Tróia! A grande Tróia está em chamas!” Rossetti
“Antes do nascimento de Páris, Hécuba, rainha de Tróia, sonhou que tinha dado à luz
um facho que destruiria pelo fogo as muralhas de Tróia.”

PRÓLOGO
A chuva caíra o dia inteiro; ora densa, ora em finos aguaceiros, mas nunca cessando
por completo. As mulheres levaram os seus fusos para dentro, para junto da lareira, e as
crianças amontoaram-se sob as sacadas do pátio. Aventuravam-se a sair por breves minutos
entre dois aguaceiros para chapinhar nas poças rodeadas por fiadas de tijolo e patinhar de
lama o caminho até a lareira. Ao fim da tarde, a mais velha das mulheres que se encontravam
junto ao fogo julgava enlouquecer com o som dos gritos e do chafurdar, das cargas dos
pequenos exércitos, do embate das espadas de pau nos escudos de madeira, com o som dos
estilhaços e das brigas causadas pelos brinquedos quebrados, as lealdades deslocadas de chefe
para chefe, os gritos de “morto” e “ferido” quando alguém era excluído da brincadeira.
A chuva que caía pela chaminé era ainda demasiada para permitir cozinhar em
condições na lareira; com o escurecer do dia de inverno ia se acendendo o lume nos braseiros.
À medida que o cheiro bom da carne e do pão a cozer se ia espalhando, as crianças vinham
uma após outra acocorar-se como cachorros famintos, inspirando ruidosamente e discutindo
ainda, a meia voz. Pouco antes do jantar uma visita apareceu à porta: um menestrel, um
caminhante cuja lira, suspensa do ombro, lhe garantia o bom acolhimento e o alojamento onde
quer que fosse. Depois de lhe terem oferecido comida, um banho e roupas secas, o menestrel
veio e tomou o lugar destinado aos convidados mais bem-vindos, perto do fogo. Começou a
afinar o seu instrumento, encostando o ouvido às cravelhas de tartaruga e testando o som com
o dedo. Em seguida, sem pedir licença - já nesse tempo um bardo fazia o que entendia -
dedilhou um único e sonante acorde e declamou:
“Cantarei as batalhas e os grandes homens que nelas combateram; Os homens que
permaneceram por dez anos defronte das muralhas de Tróia, erigidas por gigantes;
E os Deuses que derrubaram, por fim, essas muralhas: Apolo, Senhor do Sol, e
Posídon, O que Faz Tremer a Terra.
Cantarei a lenda da vida do poderoso Aquiles, nascido de uma Deusa, tão forte que
arma alguma o poderia destruir. E mesmo a história do seu orgulho e arrogância e aquela
batalha em que ele e o grande Heitor lutaram ao longo de três dias nas planícies, frente às
altas muralhas de Tróia;
O orgulhoso Heitor e o galante Aquiles, os Centauros e as Amazonas, Deuses e
heróis,
Odisseu e Enéias, todos os que combateram e foram mortos nas planícies, diante de
Tróia...”
— Não! — exclamou a velha bruscamente, deixando cair o fuso e levantando-se. —
Não o permitirei! Não quero ouvir esses disparates contados na minha sala!
O menestrel deixou a mão esquerda tombar sobre as cordas, num tanger dissonante; o
seu ar era de desalento e surpresa, mas o tom de voz foi cortês.
— Senhora?
— Digo que não permitirei que essas estúpidas mentiras sejam contadas junto à minha
lareira! — disse ela veementemente.
As crianças soltaram sons de desapontamento; ela silenciou-as com um gesto
imperioso.
— Menestrel, és bem-vindo a tomar a tua refeição e a sentar-te ao pé do meu fogo;
mas não permitirei que enchas os ouvidos das crianças com essas mentiras sem sentido. Isso
não foi, de todo, assim.
— Verdade? — inquiriu o tocador de harpa. — Como o sabes, senhora? Eu canto a
lenda como me foi ensinada pelo meu mestre, tal como é cantada em todos os lugares desde
Creta a Cálcis...
— Pode ser cantada dessa forma desde aqui até a ponta do mundo — disse a velha —,
mas não foi, de todo, assim que aconteceu.
— Como sabes? — perguntou o menestrel.
— Porque estava lá e assisti a tudo — replicou a velha. As crianças murmuraram e
gritaram.
— Nunca nos contaste isso, avó. Conheceste Aquiles, e Heitor, e Príamo, e os heróis
todos?
— Heróis! — disse ela com desdém. — Sim, conheci-os; Heitor era meu irmão.
O menestrel inclinou-se para diante e olhou-a insistentemente.
— Sei agora quem és — disse ele por fim.
Ela assentiu inclinando a cabeça branca.
— Então talvez tu, senhora, devesses contar a história; eu, que sirvo o Deus da
verdade, não mais cantaria mentiras para serem escutadas por todos os homens.
A velha ficou por longo tempo em silêncio. Por fim, disse:
— Não, não consigo viver tudo aquilo de novo.
As crianças lamentaram-se, desapontadas.
— Não tens outra lenda para cantar?
— Muitas — disse o tocador de harpa — mas não queria contar uma história da qual
escarnecesses como de uma mentira. Por que não contas a verdade para que eu possa cantá-la
em outros lugares?
Ela sacudiu energicamente a cabeça.
— A verdade não é uma boa história.
— Não podes ao menos dizer-me quais são os desvios da minha história, para que eu a
possa emendar?
Ela suspirou.
— Houve um tempo em que eu teria tentado — disse — mas nenhum homem quer
acreditar na verdade. Porque a tua história fala de heróis e reis, não de rainhas; e de Deuses,
não de Deusas.
— Não é bem assim — disse o tocador de harpa — pois grande parte da história fala
da bela Helena, raptada por Páris; e de Leda, a mãe de Helena, e sua irmã Clitemnestra,
seduzida pelo grande Zeus, o qual tomou a forma de seu marido, o rei...
— Sabia que não poderias compreender — disse a velha mulher — já que, para
começar, nesta terra a princípio não existiam reis, mas somente rainhas, as filhas das Deusas e
estas escolhiam os seus consortes onde queriam. Mas, depois, os adoradores dos Deuses do
Céu, a tribo dos cavaleiros, os utilizadores do ferro, desceram à nossa terra; e quando as
rainhas os tomaram como consortes, eles intitularam-se reis e exigiram o direito de governar.
E assim os Deuses e Deusas se tornaram rivais; e chegou o tempo em que Tróia foi palco das
suas disputas... — deteve-se abruptamente. — Basta! — disse ela. — O mundo mudou. Vejo
que me julgas uma velha cujo espírito divaga. Este foi sempre o meu destino: falar a verdade
e nunca ser acreditada. Sempre foi assim e sempre assim será. Canta o que quiseres; mas não
zombes da minha verdade junto à minha lareira. Há muitas lendas. Conta-nos a de Medéia,
Senhora de Cálcis, e do tosão dourado que Jasão roubou do seu santuário, se é que o fez.
Ousaria dizer que também para essa lenda existe outra verdade, mas eu não a conheço nem
me interessa saber qual será; há muitos e longos anos que não ponho pé em Cálcis. —
Apanhou o seu fuso e, calmamente, começou a fiar.
O tocador de harpa baixou a cabeça.
— Seja como queres, Cassandra — disse ele. — Todos pensamos que morreras em
Tróia ou, pouco depois, em Micenas.
— Então isso devia provar-te que, pelo menos em certos detalhes, a lenda não diz a
verdade — disse ela, mas em voz baixa.
“Mantém-se a minha sina: falar sempre a verdade e ser apenas julgada louca. Até
hoje, o Senhor do Sol não me perdoou...”