Saturday, October 31, 2009

FHC

01 de novembro de 2009 | N° 16142
ARTIGOS
Para onde vamos?, por Fernando Henrique Cardoso*


A enxurrada de decisões governamentais esdrúxulas, frases presidenciais aparentemente sem sentido e muita propaganda talvez levem as pessoas de bom senso a se perguntarem: afinal, para onde vamos? Coloco o advérbio “talvez” porque alguns estão de tal modo inebriados com “o maior espetáculo da terra”, de riqueza fácil que beneficia a poucos, que tenho dúvidas. Parece mais confortável fazer de conta que tudo vai bem e esquecer as transgressões cotidianas, o discricionarismo das decisões, o atropelo, se não da lei, dos bons costumes. Tornou-se habitual dizer que o governo Lula deu continuidade ao que de bom foi feito pelo governo anterior e ainda por cima melhorou muita coisa. Então, por que e para que questionar os pequenos desvios de conduta ou pequenos arranhões na lei?

Só que cada pequena transgressão, cada desvio, vai se acumulando até desfigurar o original. Como dizia o famoso príncipe tresloucado, nesta loucura há método. Método que provavelmente não advenha do nosso Príncipe, apenas vítima, quem sabe, de apoteose verbal. Mas tudo o que o cerca possui um DNA que, mesmo sem conspiração alguma, pode levar o país, devagarinho, quase sem que se perceba, a moldar-se a um estilo de política e a uma forma de relacionamento entre Estado, economia e sociedade, que pouco têm a ver com nossos ideais democráticos.

É possível escolher ao acaso os exemplos de “pequenos assassinatos”. Por que fazer o Congresso engolir, sem tempo para respirar, uma mudança na legislação do petróleo mal explicada, mal ajambrada? Mudança que nem sequer pode ser apresentada como uma bandeira “nacionalista”, pois se o sistema atual, de concessões, fosse “entreguista” deveria ter sido banido, e não foi. Apenas se juntou a ele o sistema de partilha, sujeito a três ou quatro instâncias político-burocráticas para dificultar a vida dos empresários e cevar os facilitadores de negócios na máquina pública. Por que anunciar quem venceu a concorrência para a compra de aviões militares se o processo de seleção não terminou? Por que tanto ruído e tanta ingerência governamental em uma companhia (a Vale) que, se não é totalmente privada, possui capital misto regido pelo estatuto das empresas privadas? Por que antecipar a campanha eleitoral e, sem qualquer pudor, passear pelo Brasil às custas do Tesouro (tirando dinheiro do seu, do meu, do nosso bolso...) exibindo uma candidata claudicante? Por que, na política externa, esquecer-se de que no Irã há forças democráticas, muçulmanas inclusive, que lutam contra Ahmadinejad e fazer mesuras a quem não se preocupa com a paz ou os direitos humanos?

Pouco a pouco, por trás do que podem parecer gestos isolados e nem tão graves assim, o DNA do “autoritarismo popular” vai minando o espírito da democracia constitucional. Essa supõe regras, informação, participação, representação e deliberação consciente. Na contramão disso tudo, vamos regressando a formas políticas do tempo do autoritarismo militar, quando os “projetos de impacto” (alguns dos quais viraram “esqueletos”, quer dizer obras que deixaram penduradas no Tesouro dívidas impagáveis) animavam as empreiteiras e inflavam os corações dos ilusos: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Em pauta, temos a transnordestina, o trem-bala, a Norte-Sul, a transposição do São Francisco e as centenas de pequenas obras do PAC, que, boas algumas, outras nem tanto, jorram aos borbotões no orçamento e minguam pela falta de competência operacional ou por desvios barrados pelo TCU. Não importa: no alarido da publicidade, é como se o povo já fruísse os benefícios: “Minha casa, minha vida”; biodiesel de mamona, redenção da agricultura familiar; etanol para o mundo e, na voragem de novos slogans, pré-sal para todos.

Diferentemente do que ocorria com o autoritarismo militar, o atual não põe ninguém na cadeia. Mas da própria boca presidencial saem impropérios para matar moralmente empresários, políticos, jornalistas ou quem quer que seja que ouse discordar do estilo “Brasil potência”. Até mesmo a apologia da bomba atômica como instrumento para que cheguemos ao Conselho de Segurança da ONU – contra a letra expressa da Constituição – vez por outra é defendida por altos funcionários, sem que se pergunte à cidadania qual o melhor rumo para o Brasil. Até porque o presidente já declarou que em matéria de objetivos estratégicos (como a compra dos caças) ele resolve sozinho. Pena que tivesse se esquecido de acrescentar “l’État c’est moi”. Mas não esqueceu de dar as razões que o levaram a tal decisão estratégica: viu que havia piratas na Somália e, portanto, precisamos de aviões de caça para defender “nosso pré-sal”. Está bem, tudo muito lógico.

Pode ser grave, mas, dirão os realistas, o tempo passa e o que fica são os resultados. Entre estes, contudo, há alguns preocupantes. Se há lógica nos despautérios, ela é uma só: a do poder sem limites. Poder presidencial com aplausos do povo, como em toda boa situação autoritária, e poder burocrático-corporativo, sem graça alguma para o povo. Este último tem método. Estado e sindicatos, Estado e movimentos sociais estão cada vez mais fundidos nos altos-fornos do Tesouro. Os partidos estão desmoralizados. Foi no “dedaço” que Lula escolheu a candidata do PT à sucessão, como faziam os presidentes mexicanos nos tempos do predomínio do PRI. Devastados os partidos, se Dilma ganhar as eleições, sobrará um subperonismo (o lulismo) contagiando os dóceis fragmentos partidários, uma burocracia sindical aninhada no Estado e, como base do bloco de poder, a força dos fundos de pensão. Estes são “estrelas novas”. Surgiram no firmamento, mudaram de trajetória e nossos vorazes mas ingênuos capitalistas recebem deles o abraço da morte. Com uma ajudinha do BNDES, então, tudo fica perfeito: temos a aliança entre o Estado, os sindicatos, os fundos de pensão e os felizardos de grandes empresas que a eles se associam.

Ora dirão (já que falei de estrelas), os fundos de pensão constituem a mola da economia moderna. É certo. Só que os nossos pertencem a funcionários de empresas públicas. Ora, nessas, o PT, que já dominava a representação dos empregados, domina agora a dos empregadores (governo). Com isso, os fundos se tornaram instrumentos de poder político, não propriamente de um partido, mas do segmento sindical-corporativo que o domina. No Brasil, os fundos de pensão não são apenas acionistas – com a liberdade de vender e comprar em bolsas – mas gestores: participam dos blocos de controle ou dos conselhos de empresas privadas ou “privatizadas”. Partidos fracos, sindicatos fortes, fundos de pensão convergindo com os interesses de um partido no governo e para eles atraindo sócios privados privilegiados, eis o bloco sobre o qual o subperonismo lulista se sustentará no futuro, se ganhar as eleições. Comecei com para onde vamos? Termino dizendo que é mais do que tempo de dar um basta ao continuísmo antes que seja tarde.

*Ex-presidente da República

Friday, October 30, 2009

S.

Houve um tempo, tempo tão distante que não faz mais parte da lembrança da humanidade, em que nasceu um menino risonho de cabelos loiros encaracolados. Nasceu prematuro, e a Sorte quis que sobrevivesse. Digo a sorte pois não havia recurso médico em caso de complicações da prematuridade. Era um lugar muito quente, às margens de um rio caudaloso, onde não soprava o vento.

A mãe do menino não gostava daquele lugar e logo mudou-se para outro, ainda quente, mas que à noite refrescava. O menino ali cresceu e seus cabelos foram ficando lisos e morenos. Su pele era clara, mas não pálida. Seus olhos castanhos claros entregavam duas coisas a sua mãe (à época uma bruxa poderosa): seu filho era capaz de ver o mundo dos espíritos e de conhecer os penamentos e a alma das pessoas. Naquela noite chorou muito por S. - este era seu nome. Sabia no sofrimento que esses “dons” implicariam no futuro.

S. atingiu a adolescência e, após 9 gerações de bruxas comandadas por mulheres, a mãe recebeu a ordem de suas antepassadas de que S deveria ser iniciado e sucedê-la no comando do clã. Mais uma vez, assustada, chorou. Mas um antepassado em quem confiava – seu falecido pai, ele próprio bruxo -tranquilizou-a em sonho. Disse-lhe: a S foi dada o fardo da precognição, porém também a sabedoria de julgar.

S. viveu sua vida como curandeiro, ofício em que destacava-se pelas vantagens de seus secretos conhecimentos.

Faleceu e foi chamado para Emissário da Morte. Recentemente – entendam, falamos de séculos/milênios – foi descoberto por um demônio menor chamado M. - e foi chamado pelo Chefe para trabalhar no RH. É nosso Analista de Acordos para Almas Imortais, tem uma sala modesta no final do corredor, no mesmo andar que a minha, e todo mês saímos para beber. Prometeu-me um presente de Dia das Bruxas e disse: este presente violará diversas regras daqui e lá de Cima, mas danem-se. Eles quem me ensinaram a burlar as regras. Pena que só abro amanhã à noite. Meia-noite. 31/10/2009 A.D.

Resolveu “antecipar” - palavras dele – a entrega, pois ano que vem partirá. Dia 01/01. Preciso solicitar nova nomeação.

Alan Turing again

"from: aturing@mail.above.net.aa
to alexandre.lucas@rh.underworld.net.zz
date Sat, Oct 31, 2009 at 12:10 AM
subject Internet and Human Rights
mailed-by mail.above.net.aa
signed-by above.net.aa

Prezado Senhor Alexandre Lucas,

Quem lhe escreve é o antecessor em interesse pela informática Alan Turing. Recentemente saí de longa depressão desde meu suicídio com uma maçã por mim envenenada com cianureto em 1954. A história você já conhece e amigos aqui de cima disseram-me que inclusive repercutiu recentemente após o pedido de desculpas do Governo Inglês, na figura do Primeiro Ministro Gordon Brown. Confesso que esse tardio reconhecimento foi o que me tirou da depressão e auto-comiseração.

Na última semana até criei coragem e li seus posts técnicos sobre softwares e hardwares. Agradou-me o interesse mútuo, mas não é isso que me traz a estas linhas, e sim a falsa sensação de segurança e aceitação social que venho observando na comunidade GLBT.

Verdade que na maioria do mundo civilizado os tempos não são mais tão difíceis e de absurda crueldade e desumanidade como em 1954, quando deram a mim, um herói da 2a Grande Guerra, duas "opções" por ser homossexual: cadeia ou castração química. Os efeitos nefastos sobre meu corpo da 2a me levaram a considerar e levar a cabo o suicídio. Fui perdoado e por isto escrevo daqui de cima.

Tive tempo de estudar e observar o desenrolar dos tempos nestes anos todos de relativa reclusão aqui no além-morte. Posso dizer e peço que observem que a relativa aceitação, retirada do código internacional de doenças (ainda não atingido pelas comunidades trans e intersexo), redução dos direitos fundamentais negados e repressão das várias formas de preconceito e estresses familiar e profissional.

Peço atenção: não baixem a guarda. A sensação de segurança é ilusória. Para tomar como exemplo o Brasil, só ocorre em menos de meia dúzia de grandes centros urbanos, e restrita a "guetos" - palavra adequada embora com aspectos pejorativos - e é descaradamente negada às classes baixas e na maioria do país grassa o preconceito aberto, com apoio da maioria da população. Poucos corajosos vão abrindo caminho, como eu - no meu caso involuntariamente - sob grande custo pessoal.

Sabemos que seu Chefe, como o Meu, são simpatizantes. Ambos acima desses humanos atrasos mentais. Isso é que me leva a confiar que um dia a igualdade de direitos será atingida. Peço que me informe, agora que descobri a militância, em que posso ajudar.

Atenciosamente,
Alan Turing

(tradução gentil do inglês britânico para o português contemporâneo pelos anjos (agora caídos) que estiveram a instigar o povo da extinta Babel bíblica).

Minha resposta foi sucinta:
Caro Alan,

Inicialmente peço que perdoe chamá-lo pelo 1° nome, mas achei Mr. Turing por demais sisudo. Apenas lhe digo: fique tranqüilo. Veremos, não nego, retrocessos, mas a Roda da Vida gira sempre adiante, ao final. Consultei nosso jurista, Conselheiro Pavi, e ele compartilha esta opinião, também pela posição dos Poderosos, embora o Papa Palpatine pregue o contrário.

Humberto Eco já dizia que somos anões no ombro de gigantes. Tenha o orgulho de que não viveu nem sofreu em vão. Sua mensagem ficará para sempre aqui registrada.

Conselho pessoal: peça autorização ao controle de trânsito e compareça a algumas de nossas festas. Traga Harvey Milk com você. Sentirão que nada como a troca de felicidades.

Um abraço,

Alexandre Lucas.

P.S.: a Tábata já está agendando esteticista e médicos para reverterem suas seqüelas. O pessoal aí de cima é muito conservador e valoriza chagas. Águas passadas não movem moinhos.

"É difícil aprisionar os que têm asas" - Caio Fernando Abreu

“Desde muito novos temos uma estranha sensação nas costas. Custam-nos muito movimentos como o rastejar, o enterrar ou o arrastar. Olham-nos com desconfiança. Não entendemos bem o que nos falta e porque teimam em dizer que nos falta alguma coisa. Quando nos nascem as pequenas asas, existe uma tendência quase natural para as esconder, não vá o diabo tecê-las e apontarem-nos também o dedo por termos algo de extraordinário. Evitamos grandes exposições, somos discretos e naturalmente calados. Há medo e quase só em intimidade é que vamos abrindo as nossas pequenas asas. Os primeiros vôos fazem-se em casa onde, normalmente, nos impulsionam e exemplificam os vôos. Depressa nos habituamos às alturas, a ver as diferentes perspectivas da terra, das pessoas e objetos. Gostamos de dias de sol e de vento na cara. Em terra falta-nos algo, sentimo-nos presos, respiramos com dificuldade. Temos várias designações porque as pessoas gostam muito de rotular, etiquetar e tipificar sobretudo o que diz respeito aos outros. Uns chamam-nos cabeças no ar, alienados, almas do outro mundo e até loucos. Outros, porque não sabem bem quem são, procuram um modelo e dizem-nos heróis quando na verdade aquilo que temos é mesmo e nada mais do que asas. Vamos ganhando altura. As asas já não recolhem, em terra tropeçamos e derrubamos tudo. No céu, planamos e fazemos piruetas, somos ágeis. O acasalamento é difícil, não há muitas pessoas com asas, os rituais são arriscados e temos um pouso muito incerto. Mesmo em bando somos considerados um pouco solitários e muito independentes. Os anos vão passando, vamos envelhecendo, as asas ficam mais queimadas pelo sol, porém persistimos, insistimos no vôo. Fazemos menos milhas, temos necessidade de ir mais vezes à terra. Então aí reinventamos novas formas de voar e, às vezes, ficamos apenas parados a observar o céu e pensar que já conhecemos uma considerável parte do mundo.”

Margarida Fortuna, Palavras de Sabão

Sunday, October 18, 2009

M.

A cobertura triplex de M. em Londres definia estilo. Era exatamente como um apartamento de um demônio deveria ser: enorme, paredes pintadas à perfeição, mobiliado com móveis de datas já não lembradas, e com aquela “cara” de ninguém-vive-aqui que só é realmente possível não se vivendo ali.

M. não vivia ali.

Era somente seu refúgio quando estava no plano material. As suítes tinham camas kingsize sempre feitas, com lençóis egípcios; a geladeira de aço escovado repleta de comidas finas que nunca estragavam. Com cuidado, olhei por trás e percebi que sequer estava plugada na tomada.

Na espaçosa sala de estar observei um televisor enorme, um sofá de couro branco, hometheater com HD-DVD e BluRay, um telefone sem fio (também sem estar ligado nem à rede elétrica e tampouco à telefônica, mas com duas linhas funcionantes – uma na cidade, e outra para o RH do Inferno. Também havia um sistema de som Bang&Olufsen, com designe tão exótico que só tinha o botão de liga-desliga e o controle de volume. Só não vi os alto-falantes; ele os esquecera. M. Explicou-me que não faziam diferença. A reprodução era perfeita como numa sala de orquestra.

Havia um computador que jamais havia sido usado, mas M. mandava atualizá-lo a cada mês, porque achava que o tipo de humano que ele tentava parecer teria um computador destes. Parecia uma BMW com uma tela gigante. Os manuais estavam intocados em seus saquinhos transparentes. (NOTA: * Junto com a garantia-padrão que dizia que se a máquina 1) não funcionasse, 2) não fizesse o que os anúncios diziam, 3) eletrocutasse a vizinhança imediata, 4) ou falhasse inteiramente em estar dentro da caixa caríssima quando você a abrisse, isso expressa, absoluta e implicitamente não seria em momento algum culpa ou responsabilidade do fabricante - o comprador deveria se considerar afortunado ao se permitir dar seu dinheiro ao fabricante. “Qualquer tentativa de tratar o que havia acabado de ser pago como propriedade da pessoa que o adquiriu resultaria na atenção de advogados sérios com maletas ameaçadoras”. Óbvio que era um Mac. Não obstante, M. admirou as garantias oferecidas pela indústria, e na verdade até me enviara uma caixa de presente, para Baixo, e outra para o departamento que fazia os acordos de Almas Imortais dentro do RH do Inferno, com uma pequena nota em papiro amarelado anexada dizendo apenas: "Aprendam, caras”.)

Em seu apartamento M. dedicava alguma atenção pessoal apenas às suas plantas. Enormes, verdes e gloriosas, com folhas saudáveis e lustrosas.

Neste dia ensinou-me que era porque, uma vez por semana, ele percorria o apartamento com um borrifador de água de plástico transparente, borrifando somente as folhas e falando com as plantas.

Leu sobre falar com plantas no começo dos 1970 A.D., e achara uma excelente ideia. Embora conversar talvez não definisse corretamente o que M. fazia.

O que ele fazia era instilar o medo de Deus nelas.

Ou, o medo de M..

Desta forma” - gabou-se - “a cada duas semanas pego uma planta que esteja crescendo muito devagar, ou com alguma praga ou ficando com folhas queimadas, ou simplesmente que não me agrade como as outras. Levo-a até a estufa no cume do apartamento onde as mantenho todas e digo em alta voz: Digam adeus à sua amiga. Ela não resistiu...”.

Então saía do apartamento com a planta ofensora, e voltaria uma hora ou mais depois com o vaso de flores vazio, que deixaria em algum lugar bem destacado.

As demais plantas mostravam-se verdes e lindas, as mais belas de Londres. Casualmente também eram as mais aterrorizadas.

Só observei uma única decoração de parede: um desenho emoldurado — o esboço original da Mona Lisa de Leonardo da Vinci. M. o havia comprado do artista numa tarde quente em Florença, e pressentiu que era superior à pintura final. (Nota: Leonardo também achava. "Consegui pegar direito o maldito sorriso dela nos esboços", contou a M., bebericando champagne gelado no sol do meio-dia, "mas isso se dispersou quando o pintei. O marido dela tinha algumas coisas a dizer quando entreguei o retrato, mas, como eu disse, Signor dei Giocondo, tirando o senhor, quem é que vai ver? De qualquer maneira... explique esse negócio do helicóptero outra vez, sim?").

O quarto de M. era um quarto razoavelmente pequeno – mostra de seu desdém pelo cômodo -, uma cozinha com a referida geladeira e demais eletrodomésticos. Todos aparentando recém chegados.

Adentrei o escritório, na verdade um saguão e um banheiro: cada aposento eternamente limpo e perfeito.

Amigo de longa data, permitiu-se confessar-me que havia passado um tempo desconfortável em cada um desses aposentos, durante a longa espera pelo Fim do mundo, que sabemos, não chegou.

Pediu-me desculpas para telefonar a agentes no Departamento de Castigos Eternos, para tentar conseguir notícias de uma encomenda, mas seu contato havia acabado de sair, e a recepcionista burrinha parecia incapaz de compreender que ele estava disposto a falar com qualquer um dos outros.

O Sr. Pavi também saiu, coração. Ele subiu para São Paulo esta manhã. Numa missão.

Falo com qualquer um — havia explicado M..

Vou dizer isso ao Sr. Pavi quando ele voltar. Agora, se o senhor não se importa, é uma das minhas manhãs de compras com a Tátaba do RH, e não posso deixá-la aqui ou ele morre. E às duas tenho o Sr. Alexandre Lucas, o Sr. Tony Goes e a jovem Libanesa vindo para uma sessão espírita. Tenho que limpar o lugar e fazer um monte de coisas antes. Mas darei o seu recado ao Sr. Pavi.

M. desistiu. Chamou-me para conhecer seu acervo multimídia. Tentara colocar seus CDs em ordem alfabética, mas desistira quando descobriu que eles já estavam em ordem alfabética, assim como sua estante, e sua coleção de música erudita (ele tinha muito orgulho de sua coleção). Levara eras para reuni-la. Era música da alma de verdade. Mozart não tinha nada a ver com ela.

Acabamos nos sentando no sofá de couro branco. Fez um gesto para a televisão.

Estão chegando notícias — disse - as notícias são que, bom, ninguém parece saber o que está acontecendo, mas parecem, ahn, indicar um aumento de tensões internacionais .

"Isto parece ser devido pelo menos em parte à grande quantidade de eventos incomuns que têm ocorrido nos últimos dias. "Na costa de Samoa..." M.?

Sim — retrucou-me M..

-QUE DIABOS ESTÁ ACONTECENDO, M.? O QUE EXATAMENTE VOCÊ TEM FEITO?

Como assim? — perguntou M., embora já soubesse.

-O NOSSO MESTRE ESTÁ INSATISFEITO COM AS METAS.

Ah — disse M..

-ISSO É TUDO QUE VOCÊ CONSEGUE DIZER, M.? NOSSAS TROPAS ESTÃO FORMADAS, AS QUATRO BESTAS COMEÇARAM A CAVALGAR — MAS PARA ONDE ESTÃO CAVALGANDO? ALGUMA COISA DEU ERRADO, M.. E É SUA RESPONSABILIDADE. E, BEM PROVAVELMENTE, SUA CULPA. ACREDITAMOS QUE VOCÊ TENHA UMA EXPLICAÇÃO PERFEITAMENTE RAZOÁVEL PARA ISTO TUDO...

Ah, sim — concordou M. prontamente. — Perfeitamente razoável.

-... PORQUE VOCÊ VAI TER SUA CHANCE DE EXPLICAR TUDO PARA NÓS. VOCÊ VAI TER TODO O TEMPO QUE EXISTE PARA EXPLICAR. E NÓS VAMOS ESCUTAR COM GRANDE INTERESSE TUDO O QUE VOCÊ TENHA A DIZER. E SUA CONVERSA, E AS CIRCUNSTÂNCIAS QUE A ACOMPANHAM, FORNECERÃO UMA FONTE DE ENTRETENIMENTO E PRAZER PARA TODOS DO INFERNO, M.. PORQUE NÃO IMPORTA O QUÃO DEVASTADOS PELO TORMENTO, NÃO IMPORTA QUE AGONIAS OS MAIS INFERIORES DOS MALDITOS ESTEJAM SOFRENDO, M., VOCÊ SOFRERÁ MAIS...

Com um gesto, M. desligou o som.

A tela verde-acinzentada continuava enunciando; o silêncio se formou em palavras.

-NEM PENSE EM TENTAR ESCAPAR DE NÓS, M.. NÃO HÁ ESCAPATÓRIA. FIQUE ONDE ESTÁ. VOCÊ SERÁ... COLETADO... PELA CORREGEDORIA!

M. foi até a janela à prova de ruídos – como se houvesse ruiídos a 65 andares de altura - e olhou distraidamente. Notou um carro negro descendo lentamente a rua em sua direção. Tinha forma suficiente de carro para enganar o observador distraído. M., que estava observando com muita atenção, reparou que não só as rodas não estavam rodando, como também não estavam sequer tocando o pavimento. Ele se aproximava; M. supôs que os passageiros do carro (nenhum deles estaria dirigindo; nenhum deles sabia como) estavam olhando os números das casas.

M. tinha pouco tempo. Foi até a cozinha e tirou um balde de plástico debaixo da pia. Então voltou ao hall.

As Autoridades Infernais haviam cessado sua comunicação. M. virou a televisão para a parede, por via das dúvidas.

Foi até a Mona Lisa.

Retirando o quadro da parede, revelou um cofre. Não era um cofre de parede; ele havia sido comprado de uma empresa especializada em atendimento à indústria nuclear.

Destrancou-o, revelando uma porta interna com uma trava de combinação. Girou a combinação (4-0-0-4 era o código, fácil de lembrar, o ano em que ele havia caído naquele estúpido, maravilhoso planeta, quando ainda era novo e reluzente).

Dentro havia uma garrafa térmica, duas luvas grossas de PVC, do tipo que cobria os braços inteiros de uma pessoa, e tenazes.

M. parou. Olhou nervoso o frasco.

(Ouviu um barulho no andar de baixo. Era a porta da frente...).

Calçou as luvas e apanhou desajeitado o frasco, as tenazes e o balde e se dirigiu para seu escritório, caminhando como um homem que carregava uma garrafa térmica cheia de alguma coisa que poderia provocar, se ele a deixasse cair ou mesmo pensasse nisso, o tipo de explosão que leva velhos de barbas grisalhas a dizerem coisas :"E aqui onde existe esta cratera hoje, existia a cidade de “Wah-Shing-Ton”", em filmes ainda não filmados.

No escritório, abriu a porta com o ombro e lentamente colocou as coisas no chão. Balde... tenazes... e finalmente, deliberadamente, o frasco e transferiu seu conteúdo para o borrifador das plantas.

Uma gota de suor escorreu na testa de M.,até sua orelha. Limpou-a.

Cuidadosa e deliberadamente, atarraxou a tampa do borrifador... com cuidado... MUITO CUIDADO...

Eu seguia observando.

(Uma pancada surda nas escadas abaixo, e um grito abafado. Devia ser a velha senhora no andar de baixo.)

Ele não podia se dar ao luxo de correr.

Segurou o borrifador e assegurou-se estar bem fechado, tomando cuidado para não derramar a menor gota. Um movimento em falso seria o bastante.

Pronto.

Então abriu a porta do escritório cerca de dez centímetros e colocou o balde em cima – no qual havia despejado o restante do líquido.

Pegou o borrifador de plantas e sentou-se atrás de sua mesa.

M....? — chamou uma voz gutural.

Ele está ali — sibilou outra voz. — Posso sentir o nojento.

Dois demônios, mas não podiam ver-me, graças a um dispositivo com o qual certa vez o Chefe me presenteou.

Agora, como M. seria o primeiro a protestar, a maioria dos demônios não eram tão maus assim. No grande jogo cósmico eles sentiam que ocupavam a mesma posição de fiscais de renda: faziam um trabalho que não era popular, mas essencial para a operação global da coisa toda - já explicado em posts anteriores deste blogue. Bem sabíamos, alguns anjos também não eram baluartes da virtude; M. havia conhecido um ou dois que, na hora de atacar justamente os infiéis, atacavam com mais força do que o estritamente necessário. No Plano do Ser, todo mundo tinha um trabalho a fazer, e o fazia.

E por outro lado, você tinha gente como aqueles dois demônios, que tinham tanto prazer em fazer o desagradável que não seria difícil confundi-los com humanos.

M. recostou-se em sua cadeira executiva. Forçou-se a relaxar e falhou de modo evidente.

Aqui, pessoal — chamou.

Queremos dar uma palavrinha com você — disse o mais alto (num tom de voz que pretendia implicar que "palavrinha" era sinônimo de "eternidade horrivelmente dolorosa"), e o demônio mais baixo empurrou a porta do escritório.

O balde rodopiou e caiu direitinho na cabeça do mais alto.

Derrame um pedaço de sódio anidro na água. Observe-o se incendiar e queimar e girar loucamente, cuspindo faíscas. Foi igualzinho, só que bem mais feio.

O demônio descascou, incendiou-se e tremeluziu. Uma fumaça marrom oleosa começou a emanar de seu corpo, e ele gritou e gritou e gritou. Era como se sua forma se amassasse, se dobrasse sobre si mesma, e o que sobrou ficou brilhando no círculo queimado e escurecido de tapete, parecendo um punhado de plástico queimado.

Oi — disse M. para o baixinho, que vinha andando atrás e, infelizmente não tinha recebido sequer um pingo.

Existem certas coisas que são impensáveis: coisas que nem mesmo os demônios acreditam que outros demônios se atreveriam a fazer.

... água benta. Seu filho da puta. — Seu completo filho da puta. Ele nunca sequer fizera nada a você.

Ainda não — corrigiu M., que se sentia um pouco mais confortável, sorrindo, agora que as chances estavam mais favoráveis. Mais, mas não completamente equilibradas, nem de longe. O demônio baixinho era um Duque do Inferno. M. não era sequer um conselheiro local.

Seu destino será sussurrado por mães em lugares escuros para apavorar seus filhos — disse o Duque, e então sentiu que a linguagem do Inferno não estava surtindo o efeito esperado. — Você vai virar poeira de estrela, companheiro — acrescentou.

M. ergueu o borrifador de plantas de plástico verde e o sacudiu ameaçador.

Vá embora — disse. Ouvi o telefone tocar lá embaixo. Quatro vezes, e então a secretária eletrônica atendeu. Imaginei quem seria.

Você não me mete medo — disse o Duque.

Sabe o que é isto? — perguntou M.. — Isto é o borrifador de água mais barato do supermercado, e surpreendentemente o mais eficiente borrifador de plantas do mundo. Ele pode espirrar uma fina camada de água no ar. Será que eu preciso lhe dizer o que está aqui dentro? Pode transformar você naquilo — apontou para a sujeira no tapete. — Agora caia fora.

Você está blefando — disse o Duque.

Talvez esteja — disse M., num tom de voz que esperava que deixasse bem claro que blefar era a última coisa em sua mente. — E talvez não. Está se sentindo com sorte?

O Duque um gesto, e o bulbo plástico desapareceu como se nunca houvesse existido.

Sim — disse O Duque. E sorriu. Seus dentes eram afiados demais e sua língua dançava entre eles, bífida. — E você?

M. não disse nada. O Plano A havia funcionado. O Plano B, falhado. Tudo dependia do Plano C, e só havia um problema: ele não tinha certeza de que eu colaboraria.

Então — sibilou o Duque — hora de ir, M..

Acho que tem algo que você devia saber — disse M., tentando ganhar tempo.

O que é? — sorriu o Duque.

Então o telefone na mesa de M. tocou. Ele pegou o fone.

Não se mexa. Tem uma coisa muito importante que você devia saber, e eu estou falando sério. Alô?

Ngh — disse M.. Então disse: — Não. Tem um velho amigo aqui.

M. desligou na cara dele. M. ficou tentando adivinhar o que ele queria.

E de repente o Plano C estava lá, em sua cabeça. Não colocou o fone de volta no gancho. Em vez disso ele disse:

Ok, Duque. Você passou no teste. Está pronto para entrar no time dos grandes.

Você ficou louco?

Não. Não está entendendo? Isto foi um teste. Os Senhores do Inferno precisavam saber se você era digno de confiança antes de lhe darmos o comando da Legiões das Pestes, na Guerra adiante.

M., você está mentindo ou você está louco, ou provavelmente as duas coisas — disse o duque, mas com evidente incerteza. Só por um momento, ele havia alimentado a possibilidade; de que ele estava onde M. o havia colocado. Não seria impossível que o Inferno o estivesse testando. E que M. fosse mais do que parecia. O Duque era paranóico, o que era simplesmente uma reação sensata e bem-ajustada a se viver no Inferno, onde realmente estava todo mundo a fim de te pegar. E onde pode-se achar uma unha em um brigadeiro.

Nisto desliguei o dispositivo e o Duque deu um pulo para trás, surpreso. Como não havia sentido a minha presença? Mas me conhecia..

Tudo bem, Duque . Nada estava acertado ainda, mas acredite: vindo de mim faremos ad referendum do Conselho das Trevas? Tenho certeza de que eles o convencerão.

O número que M. havia discado deu um clique e começou a tocar.

Tchau, babaca — disse ao Duque.

E desapareceu.

Numa ínfima fração de segundo, desapareci também, deixando ao Duque o número da secretária da Tábata, para os arranjos finais no pequeno papel no chão em tinta preta.

Eu acabara de pagar a M.

Pelo ensino do cultivo de plantas.

O Duque rosnou, fez o bilhete vir à sua mão com um gesto, e voltou ao carro que não era carro.

Wednesday, October 14, 2009

Sally's Pigeons


Sally's Pigeons
Artist: Cyndi Lauper
When I was eight I had a friend With a pirate smile Make believe and play pretend We were innocent and wild Hopped a fence and slammed the gate Running down my alleyway In time to watch Sally's pigeons fly We loved to watch them dive and soar Circle in the sky Free as a bird from three to four And never knowing why Neighbors pulled their wash back in Put away my Barbie and Ken Look out overhead While Sally's pigeons fly I had a fool's confidence That the world had no boundaries But instincts and common sense Come in different quantities My heart began to Skip to the beat Of the boy next door She had her eye across the street On someone shy and tall We lived our dreams And challenged fate In tears she told me she was late And Sally let his pigeons out to fly... On the dresser sits a frame With a photograph Two little girls in ponytails Some twenty one years back She left one night with just a nod Was lost from some back alley job I close my eyes and Sally's pigeons fly She never saw those birds again And me, I can't remember when A pirate smile hasn't made me cry I close my eyes And Sally's pigeons fly...

Saturday, October 10, 2009

Arte Sacra

Todas as imagens ampliam-se quando se clica com o botão direito do mouse sobre elas.


-Postal com a obra que mais apreciei: Nossa Senhora das Dores:
-Verso do cartão postal:

-Ingresso:
-A sinalização é precária (placa marrom):
-Idem:
-lindo ipê-roxo no páteo interono:


-muro visto por fora:

Recomendo a visita =D

Cretone


O cretone (cretonne em francês), é sinônimo de bramante. Tecido encorpado, de algodão e/ou linho ou outras mesclas, com cânhamo entrelaçado, muito utilizado, especialmente no passado na confecção de colchas, cortinas e tapetes.
O nome seria homenagem ao francês Paul Creton, grande empresário têxtil da antiga Normandia.
Considerado tecido nobre, aconchegante e macio, foi muito exportado pelos países da Europa Ocidental.

Psicografia (b)

Em resposta:

From: zzalexandre.lucas@rh.underworld.net.zz
To:jmspjr@underworld.net.
Date: A.D. 2009/10/11
Subject: Evo
Estimado Barão do Rio Branco,

Dê como certas as providências. O Chefe em pessoas, apesar de não poder adiantar os fatos, por acordo diplomático com o Andar de Cima, prometeu um Natal que será verdadeiro dia das bruxas para esses andinos. Já enviou Belzebu para acertar algumas coisas.
Notícias serão enviadas de pronto.
Atenciosamente,

Alexandre Lucas
RH do Inferno

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Psicografia (a)

From: jmspjr@underworld.net.zz
To:alexandre.lucas@rh.underworld.net.zz
Date: A.D. 2009/10/11
Subject: Evo

Senhor Alexandre Lucas,

Com votos de estima e consideração lhe escrevo esta mensagem.Sabe bem que não simpatizo com o atual Governo Federal. Se o Governo anterior, de FHC, foi por este acusado de entreguista, pelas privatizações realizadas nos mais diversos setores, acuso o atual de entreguista em termos de Relações Exteriores, e disso posso afirmar entender um pouco.

À época em que tinham o apoio norte-americano contra o Brasil, forçamos os bolivianos a assinar o Tratado de Petrópolis (1903), em que nos cederam todo o território do atual Estado brasileiro do Acre. Não cumprimos com quase nenhuma das contrapartidas, exceto quando presenteamos o Presidente de então da Bolívia com dois cavalos brancos.

Em época em que temos os EUA ao nosso lado, preocupa-me e causa espanto o entreguismo dos investimentos da PETROBRAS, dos preços pagos pelo gás - em detrimento de contratos prévios que deveriam ter sido forçosamente respeitados - e pasmo: o pedido ao Congresso em que detém maioria para DOAR aeronaves militares aos bolivianos. A troco de que? De mais uma punhalada nas costas?

Isso tudo numa época em que Chávez arma-se até os dentes com ajuda dos russos e mesmo a pobre Bolívia ensaia comprar aviões leves de ATAQUE da China. Para combater o narcotráfico, certamente que não será, pois que o presidente é ele mesmo produtor de coca.
Faço votos pelo sucesso do grupo liderado pelo conselheiro Pavi, e espero receber tal sucesso como um presente de Natal.
Eu e os Presidentes Campos Sales, Afonso Pena e Rodrigues Alves estamos de acordo.
Confiante em prontas providências,

Barão do Rio Branco

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Friday, October 9, 2009

Palavras do Chefe