Sunday, October 18, 2009

M.

A cobertura triplex de M. em Londres definia estilo. Era exatamente como um apartamento de um demônio deveria ser: enorme, paredes pintadas à perfeição, mobiliado com móveis de datas já não lembradas, e com aquela “cara” de ninguém-vive-aqui que só é realmente possível não se vivendo ali.

M. não vivia ali.

Era somente seu refúgio quando estava no plano material. As suítes tinham camas kingsize sempre feitas, com lençóis egípcios; a geladeira de aço escovado repleta de comidas finas que nunca estragavam. Com cuidado, olhei por trás e percebi que sequer estava plugada na tomada.

Na espaçosa sala de estar observei um televisor enorme, um sofá de couro branco, hometheater com HD-DVD e BluRay, um telefone sem fio (também sem estar ligado nem à rede elétrica e tampouco à telefônica, mas com duas linhas funcionantes – uma na cidade, e outra para o RH do Inferno. Também havia um sistema de som Bang&Olufsen, com designe tão exótico que só tinha o botão de liga-desliga e o controle de volume. Só não vi os alto-falantes; ele os esquecera. M. Explicou-me que não faziam diferença. A reprodução era perfeita como numa sala de orquestra.

Havia um computador que jamais havia sido usado, mas M. mandava atualizá-lo a cada mês, porque achava que o tipo de humano que ele tentava parecer teria um computador destes. Parecia uma BMW com uma tela gigante. Os manuais estavam intocados em seus saquinhos transparentes. (NOTA: * Junto com a garantia-padrão que dizia que se a máquina 1) não funcionasse, 2) não fizesse o que os anúncios diziam, 3) eletrocutasse a vizinhança imediata, 4) ou falhasse inteiramente em estar dentro da caixa caríssima quando você a abrisse, isso expressa, absoluta e implicitamente não seria em momento algum culpa ou responsabilidade do fabricante - o comprador deveria se considerar afortunado ao se permitir dar seu dinheiro ao fabricante. “Qualquer tentativa de tratar o que havia acabado de ser pago como propriedade da pessoa que o adquiriu resultaria na atenção de advogados sérios com maletas ameaçadoras”. Óbvio que era um Mac. Não obstante, M. admirou as garantias oferecidas pela indústria, e na verdade até me enviara uma caixa de presente, para Baixo, e outra para o departamento que fazia os acordos de Almas Imortais dentro do RH do Inferno, com uma pequena nota em papiro amarelado anexada dizendo apenas: "Aprendam, caras”.)

Em seu apartamento M. dedicava alguma atenção pessoal apenas às suas plantas. Enormes, verdes e gloriosas, com folhas saudáveis e lustrosas.

Neste dia ensinou-me que era porque, uma vez por semana, ele percorria o apartamento com um borrifador de água de plástico transparente, borrifando somente as folhas e falando com as plantas.

Leu sobre falar com plantas no começo dos 1970 A.D., e achara uma excelente ideia. Embora conversar talvez não definisse corretamente o que M. fazia.

O que ele fazia era instilar o medo de Deus nelas.

Ou, o medo de M..

Desta forma” - gabou-se - “a cada duas semanas pego uma planta que esteja crescendo muito devagar, ou com alguma praga ou ficando com folhas queimadas, ou simplesmente que não me agrade como as outras. Levo-a até a estufa no cume do apartamento onde as mantenho todas e digo em alta voz: Digam adeus à sua amiga. Ela não resistiu...”.

Então saía do apartamento com a planta ofensora, e voltaria uma hora ou mais depois com o vaso de flores vazio, que deixaria em algum lugar bem destacado.

As demais plantas mostravam-se verdes e lindas, as mais belas de Londres. Casualmente também eram as mais aterrorizadas.

Só observei uma única decoração de parede: um desenho emoldurado — o esboço original da Mona Lisa de Leonardo da Vinci. M. o havia comprado do artista numa tarde quente em Florença, e pressentiu que era superior à pintura final. (Nota: Leonardo também achava. "Consegui pegar direito o maldito sorriso dela nos esboços", contou a M., bebericando champagne gelado no sol do meio-dia, "mas isso se dispersou quando o pintei. O marido dela tinha algumas coisas a dizer quando entreguei o retrato, mas, como eu disse, Signor dei Giocondo, tirando o senhor, quem é que vai ver? De qualquer maneira... explique esse negócio do helicóptero outra vez, sim?").

O quarto de M. era um quarto razoavelmente pequeno – mostra de seu desdém pelo cômodo -, uma cozinha com a referida geladeira e demais eletrodomésticos. Todos aparentando recém chegados.

Adentrei o escritório, na verdade um saguão e um banheiro: cada aposento eternamente limpo e perfeito.

Amigo de longa data, permitiu-se confessar-me que havia passado um tempo desconfortável em cada um desses aposentos, durante a longa espera pelo Fim do mundo, que sabemos, não chegou.

Pediu-me desculpas para telefonar a agentes no Departamento de Castigos Eternos, para tentar conseguir notícias de uma encomenda, mas seu contato havia acabado de sair, e a recepcionista burrinha parecia incapaz de compreender que ele estava disposto a falar com qualquer um dos outros.

O Sr. Pavi também saiu, coração. Ele subiu para São Paulo esta manhã. Numa missão.

Falo com qualquer um — havia explicado M..

Vou dizer isso ao Sr. Pavi quando ele voltar. Agora, se o senhor não se importa, é uma das minhas manhãs de compras com a Tátaba do RH, e não posso deixá-la aqui ou ele morre. E às duas tenho o Sr. Alexandre Lucas, o Sr. Tony Goes e a jovem Libanesa vindo para uma sessão espírita. Tenho que limpar o lugar e fazer um monte de coisas antes. Mas darei o seu recado ao Sr. Pavi.

M. desistiu. Chamou-me para conhecer seu acervo multimídia. Tentara colocar seus CDs em ordem alfabética, mas desistira quando descobriu que eles já estavam em ordem alfabética, assim como sua estante, e sua coleção de música erudita (ele tinha muito orgulho de sua coleção). Levara eras para reuni-la. Era música da alma de verdade. Mozart não tinha nada a ver com ela.

Acabamos nos sentando no sofá de couro branco. Fez um gesto para a televisão.

Estão chegando notícias — disse - as notícias são que, bom, ninguém parece saber o que está acontecendo, mas parecem, ahn, indicar um aumento de tensões internacionais .

"Isto parece ser devido pelo menos em parte à grande quantidade de eventos incomuns que têm ocorrido nos últimos dias. "Na costa de Samoa..." M.?

Sim — retrucou-me M..

-QUE DIABOS ESTÁ ACONTECENDO, M.? O QUE EXATAMENTE VOCÊ TEM FEITO?

Como assim? — perguntou M., embora já soubesse.

-O NOSSO MESTRE ESTÁ INSATISFEITO COM AS METAS.

Ah — disse M..

-ISSO É TUDO QUE VOCÊ CONSEGUE DIZER, M.? NOSSAS TROPAS ESTÃO FORMADAS, AS QUATRO BESTAS COMEÇARAM A CAVALGAR — MAS PARA ONDE ESTÃO CAVALGANDO? ALGUMA COISA DEU ERRADO, M.. E É SUA RESPONSABILIDADE. E, BEM PROVAVELMENTE, SUA CULPA. ACREDITAMOS QUE VOCÊ TENHA UMA EXPLICAÇÃO PERFEITAMENTE RAZOÁVEL PARA ISTO TUDO...

Ah, sim — concordou M. prontamente. — Perfeitamente razoável.

-... PORQUE VOCÊ VAI TER SUA CHANCE DE EXPLICAR TUDO PARA NÓS. VOCÊ VAI TER TODO O TEMPO QUE EXISTE PARA EXPLICAR. E NÓS VAMOS ESCUTAR COM GRANDE INTERESSE TUDO O QUE VOCÊ TENHA A DIZER. E SUA CONVERSA, E AS CIRCUNSTÂNCIAS QUE A ACOMPANHAM, FORNECERÃO UMA FONTE DE ENTRETENIMENTO E PRAZER PARA TODOS DO INFERNO, M.. PORQUE NÃO IMPORTA O QUÃO DEVASTADOS PELO TORMENTO, NÃO IMPORTA QUE AGONIAS OS MAIS INFERIORES DOS MALDITOS ESTEJAM SOFRENDO, M., VOCÊ SOFRERÁ MAIS...

Com um gesto, M. desligou o som.

A tela verde-acinzentada continuava enunciando; o silêncio se formou em palavras.

-NEM PENSE EM TENTAR ESCAPAR DE NÓS, M.. NÃO HÁ ESCAPATÓRIA. FIQUE ONDE ESTÁ. VOCÊ SERÁ... COLETADO... PELA CORREGEDORIA!

M. foi até a janela à prova de ruídos – como se houvesse ruiídos a 65 andares de altura - e olhou distraidamente. Notou um carro negro descendo lentamente a rua em sua direção. Tinha forma suficiente de carro para enganar o observador distraído. M., que estava observando com muita atenção, reparou que não só as rodas não estavam rodando, como também não estavam sequer tocando o pavimento. Ele se aproximava; M. supôs que os passageiros do carro (nenhum deles estaria dirigindo; nenhum deles sabia como) estavam olhando os números das casas.

M. tinha pouco tempo. Foi até a cozinha e tirou um balde de plástico debaixo da pia. Então voltou ao hall.

As Autoridades Infernais haviam cessado sua comunicação. M. virou a televisão para a parede, por via das dúvidas.

Foi até a Mona Lisa.

Retirando o quadro da parede, revelou um cofre. Não era um cofre de parede; ele havia sido comprado de uma empresa especializada em atendimento à indústria nuclear.

Destrancou-o, revelando uma porta interna com uma trava de combinação. Girou a combinação (4-0-0-4 era o código, fácil de lembrar, o ano em que ele havia caído naquele estúpido, maravilhoso planeta, quando ainda era novo e reluzente).

Dentro havia uma garrafa térmica, duas luvas grossas de PVC, do tipo que cobria os braços inteiros de uma pessoa, e tenazes.

M. parou. Olhou nervoso o frasco.

(Ouviu um barulho no andar de baixo. Era a porta da frente...).

Calçou as luvas e apanhou desajeitado o frasco, as tenazes e o balde e se dirigiu para seu escritório, caminhando como um homem que carregava uma garrafa térmica cheia de alguma coisa que poderia provocar, se ele a deixasse cair ou mesmo pensasse nisso, o tipo de explosão que leva velhos de barbas grisalhas a dizerem coisas :"E aqui onde existe esta cratera hoje, existia a cidade de “Wah-Shing-Ton”", em filmes ainda não filmados.

No escritório, abriu a porta com o ombro e lentamente colocou as coisas no chão. Balde... tenazes... e finalmente, deliberadamente, o frasco e transferiu seu conteúdo para o borrifador das plantas.

Uma gota de suor escorreu na testa de M.,até sua orelha. Limpou-a.

Cuidadosa e deliberadamente, atarraxou a tampa do borrifador... com cuidado... MUITO CUIDADO...

Eu seguia observando.

(Uma pancada surda nas escadas abaixo, e um grito abafado. Devia ser a velha senhora no andar de baixo.)

Ele não podia se dar ao luxo de correr.

Segurou o borrifador e assegurou-se estar bem fechado, tomando cuidado para não derramar a menor gota. Um movimento em falso seria o bastante.

Pronto.

Então abriu a porta do escritório cerca de dez centímetros e colocou o balde em cima – no qual havia despejado o restante do líquido.

Pegou o borrifador de plantas e sentou-se atrás de sua mesa.

M....? — chamou uma voz gutural.

Ele está ali — sibilou outra voz. — Posso sentir o nojento.

Dois demônios, mas não podiam ver-me, graças a um dispositivo com o qual certa vez o Chefe me presenteou.

Agora, como M. seria o primeiro a protestar, a maioria dos demônios não eram tão maus assim. No grande jogo cósmico eles sentiam que ocupavam a mesma posição de fiscais de renda: faziam um trabalho que não era popular, mas essencial para a operação global da coisa toda - já explicado em posts anteriores deste blogue. Bem sabíamos, alguns anjos também não eram baluartes da virtude; M. havia conhecido um ou dois que, na hora de atacar justamente os infiéis, atacavam com mais força do que o estritamente necessário. No Plano do Ser, todo mundo tinha um trabalho a fazer, e o fazia.

E por outro lado, você tinha gente como aqueles dois demônios, que tinham tanto prazer em fazer o desagradável que não seria difícil confundi-los com humanos.

M. recostou-se em sua cadeira executiva. Forçou-se a relaxar e falhou de modo evidente.

Aqui, pessoal — chamou.

Queremos dar uma palavrinha com você — disse o mais alto (num tom de voz que pretendia implicar que "palavrinha" era sinônimo de "eternidade horrivelmente dolorosa"), e o demônio mais baixo empurrou a porta do escritório.

O balde rodopiou e caiu direitinho na cabeça do mais alto.

Derrame um pedaço de sódio anidro na água. Observe-o se incendiar e queimar e girar loucamente, cuspindo faíscas. Foi igualzinho, só que bem mais feio.

O demônio descascou, incendiou-se e tremeluziu. Uma fumaça marrom oleosa começou a emanar de seu corpo, e ele gritou e gritou e gritou. Era como se sua forma se amassasse, se dobrasse sobre si mesma, e o que sobrou ficou brilhando no círculo queimado e escurecido de tapete, parecendo um punhado de plástico queimado.

Oi — disse M. para o baixinho, que vinha andando atrás e, infelizmente não tinha recebido sequer um pingo.

Existem certas coisas que são impensáveis: coisas que nem mesmo os demônios acreditam que outros demônios se atreveriam a fazer.

... água benta. Seu filho da puta. — Seu completo filho da puta. Ele nunca sequer fizera nada a você.

Ainda não — corrigiu M., que se sentia um pouco mais confortável, sorrindo, agora que as chances estavam mais favoráveis. Mais, mas não completamente equilibradas, nem de longe. O demônio baixinho era um Duque do Inferno. M. não era sequer um conselheiro local.

Seu destino será sussurrado por mães em lugares escuros para apavorar seus filhos — disse o Duque, e então sentiu que a linguagem do Inferno não estava surtindo o efeito esperado. — Você vai virar poeira de estrela, companheiro — acrescentou.

M. ergueu o borrifador de plantas de plástico verde e o sacudiu ameaçador.

Vá embora — disse. Ouvi o telefone tocar lá embaixo. Quatro vezes, e então a secretária eletrônica atendeu. Imaginei quem seria.

Você não me mete medo — disse o Duque.

Sabe o que é isto? — perguntou M.. — Isto é o borrifador de água mais barato do supermercado, e surpreendentemente o mais eficiente borrifador de plantas do mundo. Ele pode espirrar uma fina camada de água no ar. Será que eu preciso lhe dizer o que está aqui dentro? Pode transformar você naquilo — apontou para a sujeira no tapete. — Agora caia fora.

Você está blefando — disse o Duque.

Talvez esteja — disse M., num tom de voz que esperava que deixasse bem claro que blefar era a última coisa em sua mente. — E talvez não. Está se sentindo com sorte?

O Duque um gesto, e o bulbo plástico desapareceu como se nunca houvesse existido.

Sim — disse O Duque. E sorriu. Seus dentes eram afiados demais e sua língua dançava entre eles, bífida. — E você?

M. não disse nada. O Plano A havia funcionado. O Plano B, falhado. Tudo dependia do Plano C, e só havia um problema: ele não tinha certeza de que eu colaboraria.

Então — sibilou o Duque — hora de ir, M..

Acho que tem algo que você devia saber — disse M., tentando ganhar tempo.

O que é? — sorriu o Duque.

Então o telefone na mesa de M. tocou. Ele pegou o fone.

Não se mexa. Tem uma coisa muito importante que você devia saber, e eu estou falando sério. Alô?

Ngh — disse M.. Então disse: — Não. Tem um velho amigo aqui.

M. desligou na cara dele. M. ficou tentando adivinhar o que ele queria.

E de repente o Plano C estava lá, em sua cabeça. Não colocou o fone de volta no gancho. Em vez disso ele disse:

Ok, Duque. Você passou no teste. Está pronto para entrar no time dos grandes.

Você ficou louco?

Não. Não está entendendo? Isto foi um teste. Os Senhores do Inferno precisavam saber se você era digno de confiança antes de lhe darmos o comando da Legiões das Pestes, na Guerra adiante.

M., você está mentindo ou você está louco, ou provavelmente as duas coisas — disse o duque, mas com evidente incerteza. Só por um momento, ele havia alimentado a possibilidade; de que ele estava onde M. o havia colocado. Não seria impossível que o Inferno o estivesse testando. E que M. fosse mais do que parecia. O Duque era paranóico, o que era simplesmente uma reação sensata e bem-ajustada a se viver no Inferno, onde realmente estava todo mundo a fim de te pegar. E onde pode-se achar uma unha em um brigadeiro.

Nisto desliguei o dispositivo e o Duque deu um pulo para trás, surpreso. Como não havia sentido a minha presença? Mas me conhecia..

Tudo bem, Duque . Nada estava acertado ainda, mas acredite: vindo de mim faremos ad referendum do Conselho das Trevas? Tenho certeza de que eles o convencerão.

O número que M. havia discado deu um clique e começou a tocar.

Tchau, babaca — disse ao Duque.

E desapareceu.

Numa ínfima fração de segundo, desapareci também, deixando ao Duque o número da secretária da Tábata, para os arranjos finais no pequeno papel no chão em tinta preta.

Eu acabara de pagar a M.

Pelo ensino do cultivo de plantas.

O Duque rosnou, fez o bilhete vir à sua mão com um gesto, e voltou ao carro que não era carro.