“Desde muito novos temos uma estranha sensação nas costas. Custam-nos muito movimentos como o rastejar, o enterrar ou o arrastar. Olham-nos com desconfiança. Não entendemos bem o que nos falta e porque teimam em dizer que nos falta alguma coisa. Quando nos nascem as pequenas asas, existe uma tendência quase natural para as esconder, não vá o diabo tecê-las e apontarem-nos também o dedo por termos algo de extraordinário. Evitamos grandes exposições, somos discretos e naturalmente calados. Há medo e quase só em intimidade é que vamos abrindo as nossas pequenas asas. Os primeiros vôos fazem-se em casa onde, normalmente, nos impulsionam e exemplificam os vôos. Depressa nos habituamos às alturas, a ver as diferentes perspectivas da terra, das pessoas e objetos. Gostamos de dias de sol e de vento na cara. Em terra falta-nos algo, sentimo-nos presos, respiramos com dificuldade. Temos várias designações porque as pessoas gostam muito de rotular, etiquetar e tipificar sobretudo o que diz respeito aos outros. Uns chamam-nos cabeças no ar, alienados, almas do outro mundo e até loucos. Outros, porque não sabem bem quem são, procuram um modelo e dizem-nos heróis quando na verdade aquilo que temos é mesmo e nada mais do que asas. Vamos ganhando altura. As asas já não recolhem, em terra tropeçamos e derrubamos tudo. No céu, planamos e fazemos piruetas, somos ágeis. O acasalamento é difícil, não há muitas pessoas com asas, os rituais são arriscados e temos um pouso muito incerto. Mesmo em bando somos considerados um pouco solitários e muito independentes. Os anos vão passando, vamos envelhecendo, as asas ficam mais queimadas pelo sol, porém persistimos, insistimos no vôo. Fazemos menos milhas, temos necessidade de ir mais vezes à terra. Então aí reinventamos novas formas de voar e, às vezes, ficamos apenas parados a observar o céu e pensar que já conhecemos uma considerável parte do mundo.”
Margarida Fortuna, Palavras de Sabão