A cobertura triplex de M. em Londres definia estilo. Era exatamente como um apartamento de um demônio deveria ser: enorme, paredes pintadas à perfeição, mobiliado com móveis de datas já não lembradas, e com aquela “cara” de ninguém-vive-aqui que só é realmente possível não se vivendo ali.
M. não vivia ali.
Era somente seu refúgio quando estava no plano material. As suítes tinham camas kingsize sempre feitas, com lençóis egípcios; a geladeira de aço escovado repleta de comidas finas que nunca estragavam. Com cuidado, olhei por trás e percebi que sequer estava plugada na tomada.
Na espaçosa sala de estar observei um televisor enorme, um sofá de couro branco, hometheater com HD-DVD e BluRay, um telefone sem fio (também sem estar ligado nem à rede elétrica e tampouco à telefônica, mas com duas linhas funcionantes – uma na cidade, e outra para o RH do Inferno. Também havia um sistema de som Bang&Olufsen, com designe tão exótico que só tinha o botão de liga-desliga e o controle de volume. Só não vi os alto-falantes; ele os esquecera. M. Explicou-me que não faziam diferença. A reprodução era perfeita como numa sala de orquestra.
Havia um computador que jamais havia sido usado, mas M. mandava atualizá-lo a cada mês, porque achava que o tipo de humano que ele tentava parecer teria um computador destes. Parecia uma BMW com uma tela gigante. Os manuais estavam intocados em seus saquinhos transparentes. (NOTA: * Junto com a garantia-padrão que dizia que se a máquina 1) não funcionasse, 2) não fizesse o que os anúncios diziam, 3) eletrocutasse a vizinhança imediata, 4) ou falhasse inteiramente em estar dentro da caixa caríssima quando você a abrisse, isso expressa, absoluta e implicitamente não seria em momento algum culpa ou responsabilidade do fabricante - o comprador deveria se considerar afortunado ao se permitir dar seu dinheiro ao fabricante. “Qualquer tentativa de tratar o que havia acabado de ser pago como propriedade da pessoa que o adquiriu resultaria na atenção de advogados sérios com maletas ameaçadoras”. Óbvio que era um Mac. Não obstante, M. admirou as garantias oferecidas pela indústria, e na verdade até me enviara uma caixa de presente, para Baixo, e outra para o departamento que fazia os acordos de Almas Imortais dentro do RH do Inferno, com uma pequena nota em papiro amarelado anexada dizendo apenas: "Aprendam, caras”.)
Em seu apartamento M. dedicava alguma atenção pessoal apenas às suas plantas. Enormes, verdes e gloriosas, com folhas saudáveis e lustrosas.
Neste dia ensinou-me que era porque, uma vez por semana, ele percorria o apartamento com um borrifador de água de plástico transparente, borrifando somente as folhas e falando com as plantas.
Leu sobre falar com plantas no começo dos 1970 A.D., e achara uma excelente ideia. Embora conversar talvez não definisse corretamente o que M. fazia.
O que ele fazia era instilar o medo de Deus nelas.
Ou, o medo de M..
“Desta forma” - gabou-se - “a cada duas semanas pego uma planta que esteja crescendo muito devagar, ou com alguma praga ou ficando com folhas queimadas, ou simplesmente que não me agrade como as outras. Levo-a até a estufa no cume do apartamento onde as mantenho todas e digo em alta voz: Digam adeus à sua amiga. Ela não resistiu...”.
Então saía do apartamento com a planta ofensora, e voltaria uma hora ou mais depois com o vaso de flores vazio, que deixaria em algum lugar bem destacado.
As demais plantas mostravam-se verdes e lindas, as mais belas de Londres. Casualmente também eram as mais aterrorizadas.
Só observei uma única decoração de parede: um desenho emoldurado — o esboço original da Mona Lisa de Leonardo da Vinci. M. o havia comprado do artista numa tarde quente em Florença, e pressentiu que era superior à pintura final. (Nota: Leonardo também achava. "Consegui pegar direito o maldito sorriso dela nos esboços", contou a M., bebericando champagne gelado no sol do meio-dia, "mas isso se dispersou quando o pintei. O marido dela tinha algumas coisas a dizer quando entreguei o retrato, mas, como eu disse, Signor dei Giocondo, tirando o senhor, quem é que vai ver? De qualquer maneira... explique esse negócio do helicóptero outra vez, sim?").
O quarto de M. era um quarto razoavelmente pequeno – mostra de seu desdém pelo cômodo -, uma cozinha com a referida geladeira e demais eletrodomésticos. Todos aparentando recém chegados.
Adentrei o escritório, na verdade um saguão e um banheiro: cada aposento eternamente limpo e perfeito.
Amigo de longa data, permitiu-se confessar-me que havia passado um tempo desconfortável em cada um desses aposentos, durante a longa espera pelo Fim do mundo, que sabemos, não chegou.
Pediu-me desculpas para telefonar a agentes no Departamento de Castigos Eternos, para tentar conseguir notícias de uma encomenda, mas seu contato havia acabado de sair, e a recepcionista burrinha parecia incapaz de compreender que ele estava disposto a falar com qualquer um dos outros.
— O Sr. Pavi também saiu, coração. Ele subiu para São Paulo esta manhã. Numa missão.
— Falo com qualquer um — havia explicado M..
— Vou dizer isso ao Sr. Pavi quando ele voltar. Agora, se o senhor não se importa, é uma das minhas manhãs de compras com a Tátaba do RH, e não posso deixá-la aqui ou ele morre. E às duas tenho o Sr. Alexandre Lucas, o Sr. Tony Goes e a jovem Libanesa vindo para uma sessão espírita. Tenho que limpar o lugar e fazer um monte de coisas antes. Mas darei o seu recado ao Sr. Pavi.
M. desistiu. Chamou-me para conhecer seu acervo multimídia. Tentara colocar seus CDs em ordem alfabética, mas desistira quando descobriu que eles já estavam em ordem alfabética, assim como sua estante, e sua coleção de música erudita (ele tinha muito orgulho de sua coleção). Levara eras para reuni-la. Era música da alma de verdade. Mozart não tinha nada a ver com ela.
Acabamos nos sentando no sofá de couro branco. Fez um gesto para a televisão.
— Estão chegando notícias — disse - as notícias são que, bom, ninguém parece saber o que está acontecendo, mas parecem, ahn, indicar um aumento de tensões internacionais .
"Isto parece ser devido pelo menos em parte à grande quantidade de eventos incomuns que têm ocorrido nos últimos dias. "Na costa de Samoa..." M.?
— Sim — retrucou-me M..
-QUE DIABOS ESTÁ ACONTECENDO, M.? O QUE EXATAMENTE VOCÊ TEM FEITO?
— Como assim? — perguntou M., embora já soubesse.
-O NOSSO MESTRE ESTÁ INSATISFEITO COM AS METAS.
— Ah — disse M..
-ISSO É TUDO QUE VOCÊ CONSEGUE DIZER, M.? NOSSAS TROPAS ESTÃO FORMADAS, AS QUATRO BESTAS COMEÇARAM A CAVALGAR — MAS PARA ONDE ESTÃO CAVALGANDO? ALGUMA COISA DEU ERRADO, M.. E É SUA RESPONSABILIDADE. E, BEM PROVAVELMENTE, SUA CULPA. ACREDITAMOS QUE VOCÊ TENHA UMA EXPLICAÇÃO PERFEITAMENTE RAZOÁVEL PARA ISTO TUDO...
— Ah, sim — concordou M. prontamente. — Perfeitamente razoável.
-... PORQUE VOCÊ VAI TER SUA CHANCE DE EXPLICAR TUDO PARA NÓS. VOCÊ VAI TER TODO O TEMPO QUE EXISTE PARA EXPLICAR. E NÓS VAMOS ESCUTAR COM GRANDE INTERESSE TUDO O QUE VOCÊ TENHA A DIZER. E SUA CONVERSA, E AS CIRCUNSTÂNCIAS QUE A ACOMPANHAM, FORNECERÃO UMA FONTE DE ENTRETENIMENTO E PRAZER PARA TODOS DO INFERNO, M.. PORQUE NÃO IMPORTA O QUÃO DEVASTADOS PELO TORMENTO, NÃO IMPORTA QUE AGONIAS OS MAIS INFERIORES DOS MALDITOS ESTEJAM SOFRENDO, M., VOCÊ SOFRERÁ MAIS...
Com um gesto, M. desligou o som.
A tela verde-acinzentada continuava enunciando; o silêncio se formou em palavras.
-NEM PENSE EM TENTAR ESCAPAR DE NÓS, M.. NÃO HÁ ESCAPATÓRIA. FIQUE ONDE ESTÁ. VOCÊ SERÁ... COLETADO... PELA CORREGEDORIA!
M. foi até a janela à prova de ruídos – como se houvesse ruiídos a 65 andares de altura - e olhou distraidamente. Notou um carro negro descendo lentamente a rua em sua direção. Tinha forma suficiente de carro para enganar o observador distraído. M., que estava observando com muita atenção, reparou que não só as rodas não estavam rodando, como também não estavam sequer tocando o pavimento. Ele se aproximava; M. supôs que os passageiros do carro (nenhum deles estaria dirigindo; nenhum deles sabia como) estavam olhando os números das casas.
M. tinha pouco tempo. Foi até a cozinha e tirou um balde de plástico debaixo da pia. Então voltou ao hall.
As Autoridades Infernais haviam cessado sua comunicação. M. virou a televisão para a parede, por via das dúvidas.
Foi até a Mona Lisa.
Retirando o quadro da parede, revelou um cofre. Não era um cofre de parede; ele havia sido comprado de uma empresa especializada em atendimento à indústria nuclear.
Destrancou-o, revelando uma porta interna com uma trava de combinação. Girou a combinação (4-0-0-4 era o código, fácil de lembrar, o ano em que ele havia caído naquele estúpido, maravilhoso planeta, quando ainda era novo e reluzente).
Dentro havia uma garrafa térmica, duas luvas grossas de PVC, do tipo que cobria os braços inteiros de uma pessoa, e tenazes.
M. parou. Olhou nervoso o frasco.
(Ouviu um barulho no andar de baixo. Era a porta da frente...).
Calçou as luvas e apanhou desajeitado o frasco, as tenazes e o balde e se dirigiu para seu escritório, caminhando como um homem que carregava uma garrafa térmica cheia de alguma coisa que poderia provocar, se ele a deixasse cair ou mesmo pensasse nisso, o tipo de explosão que leva velhos de barbas grisalhas a dizerem coisas :"E aqui onde existe esta cratera hoje, existia a cidade de “Wah-Shing-Ton”", em filmes ainda não filmados.
No escritório, abriu a porta com o ombro e lentamente colocou as coisas no chão. Balde... tenazes... e finalmente, deliberadamente, o frasco e transferiu seu conteúdo para o borrifador das plantas.
Uma gota de suor escorreu na testa de M.,até sua orelha. Limpou-a.
Cuidadosa e deliberadamente, atarraxou a tampa do borrifador... com cuidado... MUITO CUIDADO...
Eu seguia observando.
(Uma pancada surda nas escadas abaixo, e um grito abafado. Devia ser a velha senhora no andar de baixo.)
Ele não podia se dar ao luxo de correr.
Segurou o borrifador e assegurou-se estar bem fechado, tomando cuidado para não derramar a menor gota. Um movimento em falso seria o bastante.
Pronto.
Então abriu a porta do escritório cerca de dez centímetros e colocou o balde em cima – no qual havia despejado o restante do líquido.
Pegou o borrifador de plantas e sentou-se atrás de sua mesa.
— M....? — chamou uma voz gutural.
— Ele está ali — sibilou outra voz. — Posso sentir o nojento.
Dois demônios, mas não podiam ver-me, graças a um dispositivo com o qual certa vez o Chefe me presenteou.
Agora, como M. seria o primeiro a protestar, a maioria dos demônios não eram tão maus assim. No grande jogo cósmico eles sentiam que ocupavam a mesma posição de fiscais de renda: faziam um trabalho que não era popular, mas essencial para a operação global da coisa toda - já explicado em posts anteriores deste blogue. Bem sabíamos, alguns anjos também não eram baluartes da virtude; M. havia conhecido um ou dois que, na hora de atacar justamente os infiéis, atacavam com mais força do que o estritamente necessário. No Plano do Ser, todo mundo tinha um trabalho a fazer, e o fazia.
E por outro lado, você tinha gente como aqueles dois demônios, que tinham tanto prazer em fazer o desagradável que não seria difícil confundi-los com humanos.
M. recostou-se em sua cadeira executiva. Forçou-se a relaxar e falhou de modo evidente.
— Aqui, pessoal — chamou.
— Queremos dar uma palavrinha com você — disse o mais alto (num tom de voz que pretendia implicar que "palavrinha" era sinônimo de "eternidade horrivelmente dolorosa"), e o demônio mais baixo empurrou a porta do escritório.
O balde rodopiou e caiu direitinho na cabeça do mais alto.
Derrame um pedaço de sódio anidro na água. Observe-o se incendiar e queimar e girar loucamente, cuspindo faíscas. Foi igualzinho, só que bem mais feio.
O demônio descascou, incendiou-se e tremeluziu. Uma fumaça marrom oleosa começou a emanar de seu corpo, e ele gritou e gritou e gritou. Era como se sua forma se amassasse, se dobrasse sobre si mesma, e o que sobrou ficou brilhando no círculo queimado e escurecido de tapete, parecendo um punhado de plástico queimado.
— Oi — disse M. para o baixinho, que vinha andando atrás e, infelizmente não tinha recebido sequer um pingo.
Existem certas coisas que são impensáveis: coisas que nem mesmo os demônios acreditam que outros demônios se atreveriam a fazer.
— ... água benta. Seu filho da puta. — Seu completo filho da puta. Ele nunca sequer fizera nada a você.
— Ainda não — corrigiu M., que se sentia um pouco mais confortável, sorrindo, agora que as chances estavam mais favoráveis. Mais, mas não completamente equilibradas, nem de longe. O demônio baixinho era um Duque do Inferno. M. não era sequer um conselheiro local.
— Seu destino será sussurrado por mães em lugares escuros para apavorar seus filhos — disse o Duque, e então sentiu que a linguagem do Inferno não estava surtindo o efeito esperado. — Você vai virar poeira de estrela, companheiro — acrescentou.
M. ergueu o borrifador de plantas de plástico verde e o sacudiu ameaçador.
— Vá embora — disse. Ouvi o telefone tocar lá embaixo. Quatro vezes, e então a secretária eletrônica atendeu. Imaginei quem seria.
— Você não me mete medo — disse o Duque.
— Sabe o que é isto? — perguntou M.. — Isto é o borrifador de água mais barato do supermercado, e surpreendentemente o mais eficiente borrifador de plantas do mundo. Ele pode espirrar uma fina camada de água no ar. Será que eu preciso lhe dizer o que está aqui dentro? Pode transformar você naquilo — apontou para a sujeira no tapete. — Agora caia fora.
— Você está blefando — disse o Duque.
— Talvez esteja — disse M., num tom de voz que esperava que deixasse bem claro que blefar era a última coisa em sua mente. — E talvez não. Está se sentindo com sorte?
O Duque um gesto, e o bulbo plástico desapareceu como se nunca houvesse existido.
— Sim — disse O Duque. E sorriu. Seus dentes eram afiados demais e sua língua dançava entre eles, bífida. — E você?
M. não disse nada. O Plano A havia funcionado. O Plano B, falhado. Tudo dependia do Plano C, e só havia um problema: ele não tinha certeza de que eu colaboraria.
— Então — sibilou o Duque — hora de ir, M..
— Acho que tem algo que você devia saber — disse M., tentando ganhar tempo.
— O que é? — sorriu o Duque.
Então o telefone na mesa de M. tocou. Ele pegou o fone.
— Não se mexa. Tem uma coisa muito importante que você devia saber, e eu estou falando sério. Alô?
— Ngh — disse M.. Então disse: — Não. Tem um velho amigo aqui.
M. desligou na cara dele. M. ficou tentando adivinhar o que ele queria.
E de repente o Plano C estava lá, em sua cabeça. Não colocou o fone de volta no gancho. Em vez disso ele disse:
— Ok, Duque. Você passou no teste. Está pronto para entrar no time dos grandes.
— Você ficou louco?
— Não. Não está entendendo? Isto foi um teste. Os Senhores do Inferno precisavam saber se você era digno de confiança antes de lhe darmos o comando da Legiões das Pestes, na Guerra adiante.
M., você está mentindo ou você está louco, ou provavelmente as duas coisas — disse o duque, mas com evidente incerteza. Só por um momento, ele havia alimentado a possibilidade; de que ele estava onde M. o havia colocado. Não seria impossível que o Inferno o estivesse testando. E que M. fosse mais do que parecia. O Duque era paranóico, o que era simplesmente uma reação sensata e bem-ajustada a se viver no Inferno, onde realmente estava todo mundo a fim de te pegar. E onde pode-se achar uma unha em um brigadeiro.
Nisto desliguei o dispositivo e o Duque deu um pulo para trás, surpreso. Como não havia sentido a minha presença? Mas me conhecia..
— Tudo bem, Duque . Nada estava acertado ainda, mas acredite: vindo de mim faremos ad referendum do Conselho das Trevas? Tenho certeza de que eles o convencerão.
O número que M. havia discado deu um clique e começou a tocar.
— Tchau, babaca — disse ao Duque.
E desapareceu.
Numa ínfima fração de segundo, desapareci também, deixando ao Duque o número da secretária da Tábata, para os arranjos finais no pequeno papel no chão em tinta preta.
Eu acabara de pagar a M.
Pelo ensino do cultivo de plantas.
O Duque rosnou, fez o bilhete vir à sua mão com um gesto, e voltou ao carro que não era carro.